segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Os ultimos dias no Peru: De Machu Pichu à casa do lago

De volta a Puno, tenho finalmente tempo para ver emails, fazer telefonemas, checkar como andam as financas e, claro, tentar actualizar o blog.
Obrigado a todos os que o leem e, sobretudo, aos que de diferentes maneiras me vao mostrando que me acompanham. E, nao so mas tambem, gracas a isso que consigo contrariar a tendencia natural de me sentar num bar de um hostel a conversar e a beber uma cerveja ou deitar me na cama a descansar, e sentar me aqui, em frente a estes computadores tudo menos modernos e com teclas que insistem em encravar, nas horas que sobram da necessidade de aproveitar os dias ao maximo.

Machu Pichu foi uma agradavel surpresa. E incrivel como depois de tantas fotografias vistas atraves de tantas perspectivas e de ja saber algumas curiosidades sobre esta maravilha do mundo ela nos consegue superar as expectativas. E muito maior do que eu imaginava e o cenario que o rodeia faz com que seja infinitivamente mais especial do que todas as outras ruinas incas que visitei no vale sagrado. Uma maravilha nao o e por acaso.
Acordamos as 4 da manha para rapidamente tomarmos um duche e o pequeno almoco e logo comecarmos a caminhar. Sinceramente, nao sabia ao que ia. Demoramos pouco mais de hora e meia entre sair do hostel e chegar as portas de entrada de Machu Pichu. Foi uma hora sempre a subir, testando e levando ao limite as minhas enferrujadas capacidades fisicas. Sem sabermos que isso era essencial, levamos duas lanternas. Sem elas teria sido impossivel nao tropecar nos degraus das escadas durante a noite. Sao tambem estas escadas, que cruzam os S´s da estrada de terra por onde sobem os autocarros, que tornam a caminhada tanto mais rapida como mais cansativa.
Ver a noite ir desaparecendo para dar lugar a luz , e ao frio que nem sentiamos, da manha foi algo inesquecivel. A medida que isso ia acontecendo, aceleravamos o passo, sem nunca termos verdadeira nocao de se estariamos quase a chegar. A densa vegetacao, a quantidade de montanhas e falta de informacao faziam com que, ate bem perto do fim, nao fizessemos ideia quao distantes estavamos de chegar.
Felizmente conseguimos chegar a tempo de ver o nascer do sol e de reservar lugar para a segunda subida do dia ao Wanna Pichu, que se revelou outro desafio, sem duvida perigoso e nao recomendavel a quem sofra de vertigens. Duvido que na Europa 400 pessoas pudessem subir diariamente uma montanha naquelas condicoes, onde uma quebra de tensao pode ser suficiente para se ir desta para melhor.
A mudanca de luz ao longo do dia vai fazendo com que nunca nos cansemos de contemplar aquele lugar misterioso, como devem saber, encontrado ao acaso por um americano em 1912.
Chegamos ao fim do dia com roupas e pele castanhas, devido ao po dos caminhos de terra e ao nosso suor, com um cansaco suportavel nas pernas e com vontade de la voltar, com mais calma, para fazer o inca trail. Mas ha tanto para ver primeiro.
Para quem, como nos, nao tenha tempo para fazer o inca trail, recomendo a solucao pela qual optamos. Deu para sofrer nas pernas o suficiente para darmos o valor certo a este lugar fantastico.

Olhar para tras e relembrar naquele cenario unico os lugares que visitei, as pessoas que fui conhecendo, as historias que fui ouvindo, e os momentos de conversa, risota e partilha de experiencias com a Matilde, a Mariana e o Pinto, tinha sido, ate esse dia, o momento alto da viagem.

Chegados a Cusco, as 5 da tarde de ha nao sei quantos dias, revelou se sabia a decisao de ficarmos um dia por la, a descansar e a conviver. Tivemos tambem a oportunidade de aproveitar a animada noite cusquena, no bar do hostel e numa discoteca, na companhia das pessoas que fomos conhecendo nesses dias entre cusco e o tour a machu pichu. Tenho tentado guardar o contacto das pessoas com quem converso mais e tenho vindo a perceber que, numa escala internacional, nao ter conta no facebook e um suicidio social.

Foi no caminho entre o Hostel e o terminal de autocarros que me senti em perigo pela segunda vez. Talvez pela seguranca que quase sempre tinha sentido ate ao momento, o excesso de zelo fez com que nem sequer me informasse de onde se situava a paragem de autocarros. Assim, a medida que o taxi se afastava do centro do cusco e a beleza dos edificios era substituida pelas ruas cheias de lixo e o urbanismo tao tipico do peru a fazer lembrar favelas, a tensao aumentava. Como nao tinha nocao se a paragem de autocarros era longe ou perto, cada vez que o taxista se metia por ruas e bairros mais estranhoso o meu coracao batia mais rapido. A personalidade do taxista nao ajudou nada a situacao, falava pouco e sempre que lhe perguntei se faltava muito respondia que era ja ali a frente, sem sequer nos lancar um olhar atraves do retrovisor. Estive perto de pedir lhe para parar quando vimos um grifo, vulgo bomba de gasolina, mas o ar demasiado perigoso do bairro fez me pensar que seria pior a emenda que o soneto.
As tantas la vimos um placar a assinaliar "terminal terrestre" e finalmente pudemos respirar de alivio. Hoje, depois de ter feito a viagem que mais tarde irei contar, apercebi me que o terramoto fez com que eu passasse a dar mais importancia as pequenas probabilidades. Pensei no que fazer se o homem parasse numa rua deserta, nos apontasse alguma arma e nos levasse o que tinhamos connosco, que era simplesmente tudo o que tinhamos.
Perdi, pela segunda vez no Peru, um par de tenis. Curioso ter sido na mesma situacao: das duas vezes troquei os tenis por havaianas devido ao calor do dia e levei os comigo na mao, esquecendo me deles quando, a pressa, saia do taxi. Foi primeiro ao sair do taxi no dia do terramoto, em huacachina e depois, em cusco a chegada do terminal terrestre. Sinceramente nao me importei de ter perdido o primeiro par de tenis, eram uns nike velhos meus escolhidos a dedo para serem acabados de destruir na viagem. O mesmo nao se passou com o segundo par de tenis. Ja nao me lembro se contei, mas esses eram uns adidas que um peruano que trabalhava no hostel em huacachina me deu no dia a seguir ao terramoto, ja que eu estava descalco: tinha deixado os tenis no taxi na noite anterior e na confusao da mesma,alguem se tinha apoderado das minhas havaianas. Os tenis eram lindos, mas ha coisas piores.

Chegados a Puno, so tivemos tempo de ir ao hotel deixar as coisas e seguir para o tour de dois dias no lago titikaka. Mais uma vez, e felizmente, nao tinhamos verdadeira nocao daquilo que iamos encontrar. Ja sabiamos que era o lago mais alto do mundo, quase 4000 mil metros acima do nivel do mar, ja sabiamos que era tao grande que mais parecia um mar e ja sabiamos que iamos ficar a dormir em casa de uma familia numa das ilhas, ja que ai nao ha hoteis.
O que nos nao sabiamos era que nessa ilha alem de nao haver hoteis, tambem nao havia carros, nem telefone, nem electricidade.
Calhou nos uma familia espectacular: um casal, Wilma de 25 anos e Walter, de 28, e os seus dois filhos Jefferson e Lucy, de 4 e de 3. Depois dos dois miudos terem entrado no nosso quarto a caca de brincadeiras, tornou se impossivel nao abdicar da caminhada pela ilha para passarmos o nosso tempo com aquela familia. Foi engracado comunicar com aquelas criancas sem sequer falarmos a mesma lingua. A lingua mais falada nestas ilhas e o Quechua, idioma que, sinceramente, pensava que era tao falado no Peru, como o Latim em Portugal. Aquela ilha provou nos que nao. As criancas aprendem primeiro o Quechua e so mais tarde o castelhano. Mas, mesmo assim, a linguagem universal falou mais alto. Brincadeiras, risos e a realidade daquela ilha fez com que nos apegassemos aquelas pessoas de uma maneira que nao estavamos a espera, fazendo com que o momento alto da viagem fosse novamente renovado.

Vimos o sol esconder se nas aguas do lago, naquele que foi um dos por do sol mais cor de laranja que ja vi, enquanto jogavamos as cartas e iamos brincando com os miudos.
A noite trouxe nos a novidade que ainda nao sabiamos que iamos encontrar: naquela ilha onde vivem cerca de cinco mil pessoas, nao havia electricidade. Por sorte era noite de lua cheia e a sua luz iluminava a ilha mais do que e costume. Almocamos, jantamos, e tomamos o pequeno almoco juntos, comendo aquilo que nos davam. Ve los no seu dia a dia, a cozinhar, a brincar ou a trabalhar, fez nos viajar pela realidade daquela ilha, tao distante do mundo que conhecemos.
Das duas vezes que eu e o Pinto nos perdemos enquanto passeavamos pela ilha, bastou perguntar pela casa da Wilma e do ... (ja nao nos lembravamos do nome) Walter (prontamente nos lembravam do seu nome) para ficarmos a saber o caminho de volta. Toda a gente se conhece. Muitos so sairam da ilha para ir a Puno. A Wilma, por exemplo, viveu toda a sua vida naquela ilha, Amantani, a excepcao dos 4 meses em que trabalhou em Arequipa. So durante um ano houve luz na ilha e as infra estruturas estao la, mas a luz, essa, nao chega por falta de plata, dizem, sem se queixarem.Aquele lugar, situado a mais de tres horas de distancia daquilo a que estamos habituados a chamar de civilizacao, representa, para a maioria daquela gente, o seu mundo.


A maioria dos bebes vai a Puno nascer, para quase nunca la mais voltar, e outros nao chegam a nascer devido as 3 horas de viagem de barco ate a cidade. Crescem, tornam se homens, trabalham, envelhecem e morrem ali. Sem luz, sem televisao, sem computadores, sem universidades, sem hospitais.
E uma realidade tao distante da que conhecemos, que nos faz pensar que fomos transportado para o imaginario de um autor mais inspirado. Apesar de parecer que a vida recuou cem anos no tempo, nao vemos criancas subnutridas. Nao vemos miserias. Vemos, mais uma vez, vidas dificeis e vidas enormemente diferentes das nossas. Vemos, tambem, a essencia humana na sua plenitude. Com realidades tao distantes, vemos tracos comuns:o abracar de uma mae a um filho que chora, o riso de uma crianca empolgada com brincadeiras, a troca de cusquices entre duas velhas sentadas a sombra de uma arvore ou um pai a carregar o seu filho ao colo ate a cama.
Vimos pessoas, talvez pouco alegres, mas serenas e a viver em paz, vemos criancas entretidas com o passar dos dias e sempre alegres, prontas a brincar e a dar se a nos, que nunca antes tinham visto, atraves de abracos e sorrisos.
Jantamos com eles a mesa, da sua comida, cozinhada num forno de lenha, e a luz das velas. Vivemos, por um dia, a sua realidade. Afastamo nos, com promessas e verdadeiro desejo de um eventual regresso em que, se um dia acontecer, tudo estara mais ou menos na mesma. Os miudos cresceram, os adultos envelheceram, passaram varios turistas, como nos, e eles continuaram a sua vida pacata neste estranho lugar a luz do seculo XXI. Ajudamo los, como ja nao faziamos ha algum tempo, jaque as constantes e insistentes abordagens em Cusco e Arequipa, nos fazem fugir de cada vez que alguem nos vem impingir alguma coisa. Ajudamo los, a nossa maneira. Compramos lhes gorros e luvas, para nos e para os miudos. Levarmos dali alguma coisa foi mais que tudo, uma desculpa para lhes darmos a ajuda possivel.
Despedimo nos com verdadeira vontade de ficar mais ou de voltar, apegados que ficamos aquele mundo tao puro.

Em certa medida, sao turistas, como nos, ou visitantes como eles os preferem chamar, que possibilitam aquelas vidas. Sem o dinheiro que deles chega, e que represetna a maior fonte de rendimento para as familias da ilha, seriam certamente obrigados a muidar se para as grandes cidadeso onde lhes esperam as favelas, o desemprego, o caos e a agitacao a que nao estao habituados. Assim, vivem ali, longe de tudo mas no centro do seu mundo, tentando, como todos, ser felizes na realidade que a vida lhes reservou.

Foi, sobretudo por esta experiencia, que adoramos o Lago titikaka. E, de resto, um cenario a que os nossos olhos ja estao habituados. Na viagem de volta para Puno, cidade favela onde nunca pensei que iria ansiar chegar, senti me inseguro pela terceira vez.
A ondulacao do mar e o acentuado baloicar do barco fizeram me pensar que o barco se ia virar. Passamos momentos tensos, em que uma segunda onda depois da primeira, seria clarametne suficiente para virar o barco. Estavamos ali, no meio do lago, longe de tudo e de todos e, garanto que nao e para fazer genero, mais uma vez tive medo do pior. A cabina que chegava para 25 pessoas tinha apenas uma saida. Lembro me de pensar se seria so eu a recear tanto o pior. Lembro me de me perguntar no que fazer se o pior acontecesse, seria ironico sobreviver a um terramoto para nao escapar a um naufragio. Acho que,antes do terramoto, numa situacao destas tambem teria tido medo, como os outros tiveram. Mas desta vez dei mais importancia a pequena probabilidade do pior acontecer. Normalmente ter me ia acalmado pensando que ia ficar tudo bem. Desta vez pensei seriamente no que fazer se o barco virasse e, sinceramente, a distancia que eu estava da unica saida, nao me lembrei de nenhuma estrategia milagrosa. Felizmente para a minha sanidade mental e infelizmente para a nossa seguranca, nao fui o unico a temer o pior. Desde logo o capitao, que por duas vezes foi atirar folhas de coca ao mar, algo que normalmente so acontece uma vez e por pura tradicao. E tambem os outros que estavam tao a rasca quanto eu. No fim, um aplauso para o capitao, e um desabafo do mesmo "hoy dia lo hemos logrado".
Fica, ainda assim, alguma inquietacao para o futuro. Como e possivel que com aquela ondulacao e aquele vento, em vez de ficarem em terra se ponham a caminho de Puno.


E em Puno, que agora estou, que me despeco para ir jantar e me juntar a malta. Apanhamos amanha as 7 da manha o autocarro para La Paz e assim me despeco do Peru.
Saio com a nitida vontade de conhecer mais sitios, como Iquitos e Trujillo, e com um desejo de regressar a sitios como Lima, Huacachina e ilha de Amantani, para reencontrar aqueles que mais marcaram a minha passagem, algo que, provavelmente, nunca ha de acontecer. Mas e assim viajar.
Saio daqui com uma imagem fantastica do Peru, pais de praia, serra e selva, e de realidades contrastantes: o caos da capital, o urbanismo degradante de Ica, Pisco e Puno, o exacerbante ambiente turistico de Arequipa e especialmente Cusco e as maravilhas que fazem com que valha a pena ir visita los. Saio do imaginario dos incas, dos seus mistarios, dos Condores, dos Pumas e das Serpentes, para partir em direccao a Bolivia, a procura de mais novidades, naquela que, pelo que ja se passou, esta a ser a viagem da minha vida e, penso eu, da vida dos que a partilham comigo. Temos feito um grupo equilibrado e sempre a dar nos bem. A partilhar os programas e os dias mas sempre com liberdade e a vontade suficiente para fazermos o que nos apetece.
Relembro os que fui conhecendo e o que aprendi e penso nalguns amigos: Queiroz, ainda a trabalhar? Ainda com as duas maos? Bernardo, ja sabes que cadeira vais dar?Sempre vais conviver com o Mario Lopes? Jorge e Guilas, com vontade desse Erasmus? De resto, estao todos bem?

Hasta luego

3 comentários:

Lorena disse...

Acho que o LP te vai contratar para escreveres a nova versão dos "Dangers and Annoyances" do Peru.

Abraços e boa sorte para a inesquecível Bolívia.

PS - Não foste ao Temple of the Moon, abaixo de Huayna Picchu? Sorte a tua!

MC disse...

lol!ja chega disso! Nao tinhamos tempo para o temple of the moon.mas na altura disseram nos que valia a pena!

El-Gee disse...

Revivi muito neste post! Tambem acordei de madrugada para subir ate la acima e cheguei de rastos. Tambem fiquei muito aliviado por termos levado uma mini-lanterna! Tambem senti a emocao de chegar a entrada das ruinas antes do sol; tambem passei em Macchu Picchu dos melhores momentos da minha viagem a America do Sul. Tambem fiquei com vontade de fazer o inca-trail um dia.

Depois, achei piada a tua obsessao com os procedimentos de emergencia. eu tb penso nisso a toda a hora, e os meus planos de salvacao incluem sempre uma forma de salvar os meus blocos de notas e os dvd's com as fotografias tiradas ate agora! (tudo o resto na mochila nao tem valor absolutamente nenhum para mim numa situacao de perigo.)

Adorei a forma lucida com que analisas os problemas do pais, a sua pobreza, a dependencia do turismo, a genuinidade vs. a falsidade das pessoas em certos locais demasiado desenvolvidos pelo turismo, etc.

identifiquei-me ainda com o comentario que fazes ao facebook. abri uma conta no facebook por causa desta viagem. estava em Cuba!

para terminar, parabens pela forma com que exploras e expoes a problematica da nostalgia dos lugares e pessoas que vao e vem numa viagem.

cedo perceberas, se e que nao percebeste ja, que na viagem da vida nao podemos ter todos os amigos ao nosso lado todo o tempo e saber mante-los e gostar deles a distancia de um mail é a melhor forma de os manter vivos. a distancia separa toda a gente, uns por mais tempo que outros, pelo que dominar as relacoes a distancia é a chave para a manutencao de relacoes que prezamos.

ja escrevi demais. nao ha nd que fazer as 8 da noite numa Managua em trovoes, quando se tem um autocarro para apanhar as 4 da manha e se e o unico hospede no hotel!